segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Carta aberta ao Senhor Secretário Regional da Saúde sobre o serviço de saúde na ilha do Pico

Excelentíssimo Senhor Secretário Regional da Saúde,

Chamo-me Ivo Sousa, tenho 30 anos e sou investigador no Instituto de Telecomunicações, polo do Instituto Superior Técnico - Universidade de Lisboa. No entanto, o que tenho mais orgulho, e que indico sempre na minha biografia de artigos científicos dos quais sou autor, é o facto de ser natural da ilha do Pico.

Desde 2002 que estou ligado ao Instituto Superior Técnico, o que significa estar a maior parte do tempo a cerca de 1700 km longe da minha terra natal. Contudo, isso nunca me impediu de seguir atentamente o que se passa e acontece na ilha montanha, perceber melhor o seu passado e imaginar o seu futuro. Como recentemente um dos assuntos mais badalados na minha ilha tem sido o serviço de saúde nela prestado e as alterações que se avizinham, decidi investigar este tema e partilhar consigo algumas conclusões a que cheguei.

Em primeiro lugar, quero sublinhar que não sou clínico nem especialista nesta área. Contudo, e como qualquer pessoa, não deixo de ser um paciente que deseja sempre obter o melhor serviço possível. Assim, socorri-me da minha experiência em investigação para perceber melhor este assunto, nomeadamente através do cruzamento de notícias veiculadas nos órgãos de comunicação social com informação oficial disponibilizada online e com algumas estatísticas por mim obtidas, pois gosto de números e estes são o meu instrumento de trabalho.

No dia 5 de maio, não pude estar presente no Salão Nobre da Câmara Municipal de São Roque do Pico aquando da sua visita para esclarecer as eventuais/futuras alterações ao serviço de saúde na ilha do Pico. Contudo, acompanhei essa visita com muita atenção através do canal RASPICO TV e na altura registei estas suas palavras:
“O Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde tinha previsto, em termos de alterações dinâmicas aqui na ilha do Pico, que não era possível sem a introdução de algumas mais valias para a população, nomeadamente aquilo que é este novo edifício da USI Pico na Madalena e aquilo que poderia ser uma eventual melhoria da emergência médica pré-hospitalar na região, não era possível perceber, sem essas duas dinâmicas instaladas no campo, que tipo de evolução é que poderia ser feito ao nível dos serviços de urgência, principalmente, e de proximidade.”
Depois explicou melhor estas duas dinâmicas: a dotação nas urgências da Madalena de um médico especialista em medicina interna, 24 sobre 24 horas em presença física para fazer o atendimento; a introdução de uma viatura SIV (viatura Suporte Imediato de Vida, ou seja, uma viatura do género das Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação do INEM), a qual permite enfrentar mais rapidamente as situações de emergência, isto é, as situações que requerem uma intervenção quase imediata (por exemplo, paragens cardiorrespiratórias).

Acreditando nas suas palavras, pensei cá para mim: o médico internista poderá evitar algumas evacuações para fora da ilha do Pico e a viatura SIV vem, entre outras coisas, para salvar vidas que se perdiam devido à falta de um desfibrilador automático externo, tudo isto ao mesmo tempo que se mantêm os serviços de atendimento urgente atualmente existentes, pois o Senhor Secretário disse que primeiro era preciso instalar estas duas dinâmicas para só depois se perceber qual seria a evolução. Ou seja, as suas palavras geraram em mim uma expectativa de melhoria clara do serviço de saúde que atualmente existe.

Foi pois com grande surpresa que li a manchete da edição 554 do semanário ‘Jornal do Pico’ (de 12 de dezembro): “[em janeiro] encerramento total das urgências em São Roque e Lajes”. Pensei imediatamente que o atendimento urgente ia desaparecer por completo destes dois centros de saúde!

Para esclarecer as minhas dúvidas sobre o que estava oficialmente planeado acontecer, nada melhor do ler minuciosamente o Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde. Na página 44 deste plano encontrei então o seguinte texto:
“A distribuição de unidades de saúde na Ilha do Pico deve assegurar uma boa proximidade com a população, de forma a garantir um melhor cuidado nas situações emergentes. Esse pressuposto obrigaria à alteração do horário de funcionamento do atendimento permanente de dois dos centros de saúde da Ilha (até às 20h), concentrando o atendimento noturno em presença física no terceiro. Contudo, a orografia da Ilha, a sua distribuição populacional e a respetiva rede viária não permitem uma aplicação linear dos critérios técnicos que fundamentam essa decisão, sem que sejam tomados em consideração, por exemplo, as distâncias relativamente à qualidade dos serviços a oferecer e à eficiência das metodologias de emergência a implementar. Este condicionamento obriga, naturalmente, a uma análise mais circunstanciada dos pressupostos de decisão, para a qual devem ser tomados em consideração os efeitos resultantes da entrada em funcionamento do centro de saúde da Madalena e da introdução na rede emergência de uma viatura SIV.”
Com base neste texto conclui que se pretende encerrar, a partir das 20h, o atendimento urgente em dois dos três centros de saúde, registando que não é indicado quais os dois centros afetados. Também conclui que qualquer alteração só seria efetuada depois de se verificar os efeitos não só da entrada em funcionamento do centro de saúde da Madalena mas também da introdução viatura SIV, sendo que esta última condição ainda não se verifica. No entanto, apercebi-me que não existe nenhuma referência à dotação nas urgências da Madalena de um médico especialista em medicina interna, nem neste excerto nem em qualquer outra parte do plano!

Começaram então a baixar as minhas expectativas, pois voltei a pensar cá para mim: oficialmente está prevista a viatura SIV mas não está o médico internista; ainda para mais, numa situação de urgência durante a noite, muitas pessoas terão que realizar uma distância muito maior para obterem, segundo este plano oficial, o mesmo tipo de cuidados que têm atualmente mais perto de casa.

Mas sendo um otimista, mantive a minha crença nas suas palavras proferidas em São Roque do Pico em maio passado. Eis senão quando sou confrontado, ao ler a edição 557 do ‘Jornal do Pico’ (de 2 de janeiro), com o esclarecimento da Secretaria Regional que vossa Excelência tutela, do qual retive dois pontos:
“Qualquer alteração ao horário de funcionamento das urgências, apenas ocorrerá após a implementação das melhorias que estão previstas e foram amplamente debatidas com a população e forças vivas da ilha, nomeadamente a viatura SIV, a secção destacada dos bombeiros na Piedade, e a presença física de médico especialista hospitalar no centro de saúde da Madalena; 
As alterações previstas preveem que a disponibilidade dos médicos de medicina geral e familiar nos centros de saúde das Lajes e São Roque do Pico aumente, garantindo assim uma consulta aberta aos seus utentes no período entre as 8 e as 20 horas.”
Confesso que fiquei desiludido, pois ao invés de se cumprir as suas palavras e se instalar primeiro as mais valias, avaliar os seus efeitos (não só por parte das entidades governamentais mas também pela população) para só depois se perceber qual seria a evolução do atendimento urgente, parece que a decisão já está tomada mesmo antes de existirem estes efeitos. Através deste comunicado registei também uma tentativa de dar como moeda de troca às populações das Lajes e de São Roque do Pico um aumento da disponibilidade dos médicos de medicina geral e familiar, e digo tentativa porque, segundo as suas palavras de maio passado, os médicos atualmente já estão em presença física até às 8 da noite!

Também me apercebi, ao ler o comunicado, que ainda não existe uma data prevista para a entrada em funcionamento da viatura SIV. Lembrei-me então que talvez o Senhor Secretário e o seu gabinete mantêm a dúvida de onde colocar esta mais valia, isto porque na sua visita a São Roque do Pico disse que “uma dificuldade enorme é conseguir perceber onde é que deve ficar a SIV aqui na ilha do Pico”. Neste assunto penso que o posso ajudar: em setembro do ano transato escrevi uma carta aberta ao Presidente do Governo Regional sobre distâncias na ilha do Pico, onde demonstrei que a vila de São Roque do Pico é aquela que fica mais próxima da população da ilha do Pico, quer em termos de distâncias médias simples ou ponderadas pela densidade populacional, quer em termos de distâncias máximas (em anexo segue cópia desta carta, pois não sei se o Senhor Presidente a leu para lhe poder transmitir as conclusões da mesma, isto porque nunca me respondeu à carta). Assim, posso afirmar que não só julgo como tenho a certeza de que a proposta de colocar a viatura SIV em São Roque do Pico, avançada pelo Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde, é a escolha que melhor serve toda a população da ilha do Pico.

Recordando que gosto de números e que estes são o meu instrumento de trabalho, decidi averiguar como se insere o futuro atendimento urgente a ser prestado no Pico (admitindo que são levadas a cabo as alterações propostas) dentro da realidade açoriana, nomeadamente no que respeita à distância das populações ao local de atendimento. Tomo por definição de atendimento urgente aquela que está descrita no Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde: serviços onde “pretende-se que tratem das situações agudas ou agudizadas que não implicam observação por um médico especialista”.

Em anexo encontra-se uma tabela com dados compilados por mim, onde estão expressos os habitantes de cada uma das freguesias de todas as ilhas dos Açores (com base nos Censos 2011) e as distâncias de condução (com base no site Google Maps) entre cada uma destas freguesias e o respetivo serviço de atendimento urgente que as serve (com base nas Estatísticas da Saúde 2013), estando divido por três horários (com base no Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde): 08h-20h, 20h-24h e 00h-08h.

A partir deste conjunto de dados extraí duas estatísticas para cada ilha e para cada horário: a primeira corresponde à média ponderada pela densidade populacional, ou seja, à soma dos produtos entre a distância e a população de cada freguesia a dividir pelo número total de habitantes da respetiva ilha; a segunda estatística corresponde à distância máxima entre uma certa freguesia em cada ilha e o respetivo serviço de atendimento urgente que a serve. De seguida apresento estas estatísticas, onde se encontra destacado a preto as situações de maior distância e a sombreado cinzento as situações verificadas nas ilhas sem hospital.

Os resultados que obtive são deveras reveladores de como o encerramento noturno de serviços de atendimento urgente na ilha do Pico, conjugado com a dispersão geográfica das pessoas que residem nesta ilha, leva a que estas fiquem distantes dos cuidados de saúde. Veja-se como, das 20h às 24h, uma pessoa no Pico tem que se deslocar em média mais do dobro (21,2 km) do que qualquer outra pessoa residente noutra ilha (menos de 10 km). Ainda dentro deste horário, um residente na ilha montanha dista no máximo mais de 50 km (52,0 km), o que corresponde a mais de 21 km do que o pior caso verificado nas restantes ilhas (30,7 km). Considerando agora o horário das 00h às 08h, novamente a maior distância média a um atendimento urgente é verificada no Pico (21,2 km) e com uma diferença de mais de 6 km para o segundo pior caso (14,8 km). Em termos de distância máxima neste horário, a ilha do Pico passa a ser o segundo pior caso (52,0 km), mas é importante salientar que a pior situação não é assim tão diferente (59,3 km) e ocorre numa ilha com hospital e com vias SCUT.

Daqui só posso concluir que estou totalmente de acordo com o emprego da palavra “diferenciação”, a qual foi muito utilizada por vossa Excelência aquando da sua visita a São Roque do Pico em maio passado: as alterações propostas introduzirão uma clara diferenciação relacionada com a distância ao atendimento urgente na ilha do Pico face à restante realidade açoriana. Acrescento ainda uma questão que surgiu quando consultava os dados das Estatísticas da Saúde 2013: porque é que se pretende encerrar o atendimento urgente nos centros de saúde das Lajes e de São Roque do Pico às 20h, quando estes centros atenderam mais doentes nos serviços de urgência básica (9131 e 6925, respetivamente) do que o centro de saúde do Nordeste (4840), sendo que foi determinado que este último centro só encerraria esse serviço às 24h?

Excelentíssimo Senhor Secretário, provavelmente dir-me-á que muitas das alterações propostas têm como objetivo garantir a sustentabilidade do serviço regional de saúde. Eu não posso estar mais de acordo consigo nessa matéria: é necessário garantir hoje e sempre que os açorianos nunca ficarão privados de ter acesso aos cuidados de saúde. E sobre essa temática tenho uma sugestão para lhe dar: use e abuse da telemedicina! Não pense que afirmo isto com segundas intenções de garantir a sustentabilidade da minha área profissional (telecomunicações); digo-o porque concordo inteiramente com o que consta no Plano de Ação para a Reestruturação do Serviço Regional de Saúde:
“A telemedicina visa melhorar o acesso dos utentes e evitar deslocações desnecessárias para os doentes, permitindo o seguimento e decisão à distância, sendo um instrumento que contribui para uma maior acessibilidade dos utentes e uma maior resolubilidade.”
Dentro da área da telemedicina, este plano só refere que podem ser feitas teleconferências entre médicos, teletriagens e teleconsultas de especialidade, para além do uso da telerradiologia. Não só digo que tudo isto deve ser posto em prática o mais rápido possível, ainda para mais porque pode ser implementado com um baixo custo, mas também afirmo que se deve ir mais além. Por exemplo, porque não aliar uma teleprescrição a uma teleconsulta? Não sei se tal ato já é praticado em Portugal ou no mundo, mas porque não podem os Açores serem pioneiros nesta área? Se não existe legislação para o efeito, porque não criá-la? Já imaginou os benefícios para os utentes, além das poupança para o serviço regional de saúde (e indiretamente nos nossos impostos), se, numa ilha sem hospital, um paciente pudesse deslocar-se a um centro de saúde próximo da sua casa, ter uma teleconsulta com um especialista que se encontra no seu horário normal de trabalho no seu hospital e, caso fosse necessário para combater uma patologia, obter logo a receita médica através de um mecanismo de teleprescrição? Assim todos poupavam, todos ganhavam tempo e qualidade de vida, para além de se evitar situações como aquela que foi relatada a si em maio passado por uma antiga professora minha, onde muito me sensibilizou o facto de a mesma ter receitas médicas em atraso por falta de deslocação de médicos especialistas.

Termino, Senhor Secretário, fazendo votos que esta minha exposição lhe sirva para refletir sobre as alterações propostas ao serviço de atendimento urgente na ilha do Pico. No mínimo, peço-lhe que se cumpra a sua palavra, ou seja, primeiro deve-se verificar no terreno os efeitos das mais valias quando estas estiverem implementadas no Pico antes de existir qualquer alteração.

Despeço-me de si como sempre faço em todas as publicações no blogCais do Pico’ (caisdopico.blogspot.pt), do qual sou o autor: haja saúde [acrescentando que seja sempre durante 24h]!



Anexos:


Post scriptum: Esta carta aberta foi enviada para o correio eletrónico da Secretaria Regional da Saúde, bem como via formulário eletrónico de contacto do Governo Regional, sendo estes os contactos que estão disponíveis na página oficial do Governo Regional dos Açores. Adicionalmente, cópia desta carta foi entregue em mão ao Senhor Secretário Regional da Saúde na noite do dia 15 de janeiro, aquando da sua visita ao Salão da Silveira (Lajes do Pico) para explicar as alteração ao serviço de saúde na ilha do Pico. Nota ainda para um agradecimento ao amigo Rui Pedro Ávila, por ter ajudado a divulgar esta carta aberta através do seu espaço "Ponderando" no 'Jornal do Pico', edição n.º 560, de 30 de janeiro de 2015.

(ver também:

4 comentários:

  1. Brilhante meu Caro Amigo Engenheiro Doutor Ivo Sousa!!!!!

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  2. Mais uma excelente investigação!
    Como referi na última reunião da Assembleia Municipal, "temos que estar unidos e lutar por equidade ao acesso aos cuidados de saúde"! O tempo de espera entre o pedido de um exame complementar e a realização do mesmo é igual para um residente na ilha do Pico e para um residente na ilha de São Miguel?
    Ilustre jovem, esta ilha precisa de pessoas como tu, que lutem por ela!
    Obrigado!
    Grande abraço

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