Esta história, a qual integra o livro "Homens de Olhos Encovados e Outras Estórias de Homens do Mar", também da autoria de Francisco Medeiros, relata os acontecimentos de um típico dia de agosto na Rua do Cais, onde intervêm várias personagens bem conhecidas por estes lados do Cais do Pico.
Por razões familiares, tive o privilégio de conviver de perto com um dos intervenientes, o qual me contou as história da cabeça de burro e da linguiça tal e qual como estão descritas de seguida, podendo eu assim corroborar esta versão dos acontecimentos.
As imagens que acompanham a história foram obtidas na internet, sendo que no fim apresentam-se fotografias panorâmicas da Rua do Cais no presente (agosto de 2015).
Haja saúde!
RUA DO CAIS DO PICO NA DÉCADA DE 60 DO SÉCULO PASSADO
Tinha amanhecido sem vento. O mar manso no canal oferecia-nos um azul que destacava a ilha em frente, parecendo mais próxima. Aquela manhã de Agosto prometia mais um dia de trabalho.
O sol, vindo da Ponta do Monteiros, ia subindo lentamente. Adivinha-se mais um dia de calor. A fábrica da baleia, com os seus apitos agudos acorda quase toda a população, avisando os operários que há baleia na Baía do Cais.
Vindos do baixio da Ponta dos Rosais, o António Ruás e o Henrique Caneca, já com os barcos lavados, apressam-se a vender o peixe na pesqueira. Há abundância de abróteas, bagres, bocas negras, congros e chernes; sendo este está a cinco escudos o cambão.
O João Caneca está dentro da Garota, amarrada à bóia. Tem o motor a trabalhar para esgotar a lancha. Chegou de madrugada com baleias a reboque e espera que o vão buscar, na chata da rampa.
No varadouro do cais, o Manuel Fula, o Pé Leve, o Manuel Xareta e o Januário, com outros baleeiros, estão a estender os panos dos botes e as linhas alagados da arreada do dia anterior.
A camioneta da carreira, conduzida pelo Devezas, pára junto ao farol do Cais do Pico para descarregar os passageiros vindos da Prainha e embarcar os que vem da Piedade na camioneta conduzida pelo Miguel, a fim de seguirem para a Madalena.
Pouco depois sai o Dr. Tibério de casa, abre a porta do consultório para os que vão à consulta. Saindo portão fora, rente ao muro, dirige-se para a pesqueira, vai olhando para a baía onde estão baleias caçadas na véspera.
De regresso da pesqueira, passa junto à pequena loja por baixo do balcão do Mário Janeiro, onde o Luís Pereira está atarefado na preparação da chegada do iate Santo Amaro, que vem do Faial para fazer viagem pelos portos de S. Jorge até Angra do Heroísmo, na Terceira.
O Dr. Tibério pára à porta e pergunta:
— O que é que o Senhor vende ai dentro?
— Cabeças de burro! - diz o Luís Pereira.
— Vejo que fez muito negócio, porque já tem só uma! - e o Dr. Tibério continua a andar fingindo desinteresse.
Um dos passageiros que chegou da Prainha na camioneta dirige-se ao Dr. Tibério:
— Senhor dótor! Ó senhor dótor.
— O que é que tu queres?
— Passei mal esta noite. Dormi munto mal, nã sei que tenho!
— Vai ali, diz ao Sousa da farmácia que apareça à porta!
— Ó Sousa tu tens...? - lá diz o nome dum medicamento. Quando o homem regressa, diz-lhe como deve ser tomado.
Estava feita a primeira consulta do dia.
Em seguida, entra no consultório, para iniciar as consultas. A primeira a ser atendida é uma senhora que tem a alcunha de Capucha, de seu nome Maria Francisca do Coração de Jesus. É da Freguesia de Santa Luzia e de fracos recursos. Nos meses de Agosto costuma vender fruta no Cais do Pico. Antes de entrar no consultório, tinha ido ela à casa do Dr. Tibério, pelo lado da cozinha, levar uma porção de linguiça como oferta, que entregou à esposa do médico, D. Isaura.
Após a consulta pergunta quanto devia. O Dr. diz-lhe que são setenta escudos. Ela paga, sai do consultório, vai direita à porta da cozinha, bate e diz à criada que lhe aparece:
— O senhor dótor Tibério diz p'ra me dares a linguiça porque nã na pode comer que le faz mal.
Recebe a linguiça, sai portão fora e foi vendê-la por cem escudos!
No café da Casa Âncora, o Sousa da farmácia está dentro do balcão a fazer uma cafeteira de café. Passa mais de meia hora do meio-dia. Os clientes de todos os dias vão entrando, comentando as novidades do dia. Cada um tem o seu dia de pagar para todos, mas há um que tem andado a esquivar-se. Este quando entra cumprimenta os que já lá estão. Ninguém responde. Diz um palavrão e vai sentar-se ao pé dos habituais companheiros.
O Germano Azevedo, que já lá está, cochicha com os outros e um deles sai à socapa, vai à praça e chama todos os motoristas para virem tomar café. Naquele dia o faltoso não fugiu. Bateu o recorde, pagou dezoito cafés, com alguns bagaços à mistura.
Bons tempos!
Francisco Medeiros
Vila de São Roque do Pico
Maio de 2004
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