terça-feira, 1 de agosto de 2017

Eis o novo PIT: o Plano Invertido dos Transportes


Chegar à ilha do Pico, a partir de Lisboa, é uma viagem que normalmente assume uma das três seguintes formas:
  1. Ou se faz um voo direto desde a capital portuguesa;
  2. Ou se chega à ilha montanha num voo interilhas, após escala em São Miguel ou Terceira;
  3. Ou se faz um voo Lisboa-Horta e depois apanha-se o barco do Faial para o Pico.
Esta última solução só é possível graças ao transporte marítimo regular, isto é, os passageiros escolhem viajar para o Pico via Faial porque sabem que, depois do voo Lisboa-Horta, têm a oportunidade de apanhar o barco para a ilha montanha.

Ao longo dos anos, várias têm sido as tentativas para ir melhorando e afinando este tipo de complementaridade de meios de transportes entre ilhas distintas, com destaque para o Plano Integrado dos Transportes (PIT).

Contudo, enquanto não se identificar para que destino real os passageiros pretendem ir, o serviço ao cliente nunca atingirá os níveis de satisfação ideais, tal como demonstra o exemplo que se segue.

No passado sábado, 29 de julho de 2017, estava previsto ser realizado um voo Lisboa-Horta, com chegada à ilha do Faial pelas 16:45; a bordo vinham mais de 40 pessoas que tinham o Pico como destino final (ou seja, mais de 25% da ocupação do avião), sendo que estas iam recorrer ao transporte marítimo regular para conseguir chegar à ilha montanha (a última viagem saía da Horta às 22:15).

Acontece que o voo em questão foi cancelado e os passageiros foram realocados numa viagem a ser realizada no dia seguinte (domingo) à tarde. Contudo, a viagem do domingo registou novamente atrasos e alterações, levando a que o percurso final acabasse por ser Lisboa-Terceira-Horta, com mudança de avião na ilha Terceira e chegada ao Faial já perto das 23h.

Chegados então ao Aeroporto da Horta, e como os passageiros que pretendiam seguir para o Pico já não conseguiam recorrer ao transporte marítimo regular, a SATA fretou um transporte marítimo alternativo, de forma a tentar minorar o transtorno da viagem — note-se que, perante a legislação em vigor (Regulamento (CE) n.° 261/2004), a SATA não era obrigada a transportar os passageiros para o Pico, pois o seu "destino final no bilhete" era Horta (Faial).

Os passageiros lá rumaram à ilha montanha, tendo sido utilizado um barco semirrígido para o efeito — algumas pessoas ficaram irritadas com esta viagem atribulada, a qual terminou cerca das 2h da madrugada de segunda-feira, tendo até insinuado que não existiam coletes salva-vidas na embarcação (o que muito provavelmente não seria verdade, pois estes são obrigatórios e geralmente estão guardados a bordo em zonas não visíveis, tal como acontece nos aviões, onde nunca ninguém vê os coletes).

Se é certo que esta foi uma viagem de deixar qualquer pessoa transtornada, há que relevar o esforço feito por várias partes, nomeadamente o da SATA em fretar uma embarcação quando não era obrigada a isso, bem como a pronta disponibilização de meios marítimos que permitiram aos passageiros chegar ao Pico o mais rapidamente possível.

Por outro lado, há qualquer coisa que não bate certo: quando uma companhia aérea tem de fretar transporte marítimo não sendo obrigada a isso, é sinal de que a integração dos diferentes meios de transporte não funciona bem, ou seja, tem-se um verdadeiro Plano Invertido dos Transportes!

Mas perguntarão alguns: como se resolveria esta situação? A solução mais simples corresponde à resposta óbvia: comprar logo viagem Lisboa-Pico! Seja com ou sem escalas, assim garante-se que o "destino final no bilhete" corresponde ao destino real!

Porém, outra questão se levanta: porque é que mais de um quarto dos passageiros a bordo num voo Lisboa-Horta escolheu essa viagem se queria era ir para o Pico, ainda por cima num dia em que existe um voo direto entre Lisboa e a ilha montanha? Será por lugares esgotados nos voos para o Pico? Ou será por uma questão económica?

A resposta a estas dúvidas parece ser bem mais complexa, mas uma pequena simulação permite tirar uma conclusão factual...

Começando pela simulação, procure-se primeiro uma situação equivalente à descrita anteriormente — uma pessoa pretende viajar de Lisboa para o Pico num sábado, por exemplo a 19 de agosto de 2017 — e faça-se uma busca de lugares disponíveis e preços nas rotas Lisboa-Pico e Lisboa-Horta. A tabela seguinte resume os resultados alcançados através de simulação (resultados completos em anexo).

 Lisboa-PicoLisboa-Horta
N.º voos diretos12
Preço voo direto271,51 €98,51 €
Lugares disponíveis1Mais de 16
Voos com escalas:
— Na rota Lisboa-Pico consegue-se um preço de 131,51 € se for efetuado um voo com escala na Terceira (2 lugares disponíveis) ou em São Miguel (1 lugar disponível).
— Na rota Lisboa-Horta verifica-se que o voo direto é aquele que apresenta o preço mais baixo (98,51 €) quando comparado com os voos com escalas.

A conclusão a tirar é evidente e incontestável: viajar de Lisboa para o Pico, apenas de avião, não só é mais difícil devido à falta de lugares, bem como é bem mais caro!

A título de exemplo, imagine-se um grupo de 3 pessoas que quer partir de Lisboa a 19 de agosto e chegar ao Pico nesse mesmo dia. Esse grupo tem apenas duas hipóteses:
  • Ou escolhe o voo direto Lisboa-Pico e viaja em executiva a 316,51 € por pessoa, o que perfaz um total de 949,53 €;
  • Ou escolhe o voo Lisboa-Horta a 98,51 € por pessoa, depois apanha um táxi (14,00 €) e em seguida viaja de barco até ao Pico (3,60 € por pessoa), o que perfaz um total de 320,33 €.
Por outras palavras, é três vezes mais barato viajar de Lisboa para o Pico via Faial, do que tentar chegar diretamente à ilha montanha! Mais uma vez, entra em ação o Plano Invertido dos Transportes!

Em suma, agora já se percebe porque mais de 25% do voo Lisboa-Horta da viagem atribulada tinha como destino real o Pico. Além disso, esta percentagem foi obtida num dia em que havia um voo direto Lisboa-Pico, ou seja, provavelmente esta percentagem será ainda maior nos dias em que não existem ligações diretas entre a capital portuguesa e a ilha montanha.

Por fim, fica aqui uma pergunta no ar: com tantos factos e estatísticas claras, com voos a esgotar, com passageiros aéreos que até vêm de semirrígido para conseguir chegar ao Pico, será que a oferta aérea para o Pico está ajustada à procura?

Haja saúde!

Post scriptum: Este artigo foi publicado na edição n.º 692 do 'Jornal do Pico', de 4 de agosto de 2017 e na edição n.º 41.341 do 'Diário dos Açores', de 6 de agosto de 2017. Link para um artigo sobre este mesmo tema.