segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Como era o Pico há 155 anos


A internet consegue, por vezes, ser uma ferramenta fantástica para encontrar e partilhar informações sobre o nosso passado. Hoje vamos viajar até ao ano de 1862 e perceber como era a ilha do Pico há 155 anos, isto graças à "Carta topographica da Ilha do Pico":
Principiada a levantar no anno 1810 por ordem do Ill.mo e Ex.mo Senhor D. Miguel Antonio de Mello, sendo Governador o Capitam General das Ilhas dos Açores , e concluida por ordem do Ill.mo e Ex.mo Senhor Ayres Pinto de Souza Governador o Capitam General das ditas Ilhas no anno de 1812, pelo Segundo Tenente do Real Corpo d'Engen.ros Athanasio Desiderio Gomes Mendes Adler ; Copiou o Desenhador Urbano Augusto Cesar da Fonsêca, Horta 2 de Dezembro de 1862.

Integrando o espólio da Biblioteca Nacional de Portugal, esta carta topográfica da ilha montanha está disponível online, o que permite que qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, a possa visualizar sem sair de casa. Este documento pode ser dividido em três partes:
  • Uma planta da ilha do Pico (escala cerca de 1:68000);
  • Na margem inferior esquerda, sob o título "Ideia succinta e geographica da Ilha do Pico", uma nota com dados históricos, geográficos e económicos;
  • Na margem inferior, ao centro, um "Mappa dos habitantes segundo as listas de 1810".
Torna-se, assim, muito interessante analisar com mais atenção todas estas informações (recorrendo também à língua portuguesa da época, para experienciar melhor esta viagem no tempo) e fazer a respetiva comparação com o presente.

Começando pela planta, salta logo à vista a forma geométrica assumida pela ilha do Pico, a qual certamente não se alterou tanto em 155 anos, mas sim pode ser resultado de métodos de medição mais primitivos e que induziam em erro várias distâncias. Em todo o caso, é muito curioso observar como os nomes dos lugares, na sua esmagadora maioria, não se alteraram (salvo a evolução da língua portuguesa, como por exemplo "bahia", "Prahinha", "Magdalena", etc.). Além disso, o mapa é bastante informativo no que respeita aos principais lugares habitados da ilha, bem como à distribuição das diferentes culturas agrícolas, tipos de solo e cursos de água.

Atendendo agora à "Ideia succinta e geographica da Ilha do Pico" [destaque em anexo], encontra-se lá indicado as coordenadas geográficas da ilha, a data da sua descoberta ("depois de 1453") e a menção de que fora povoadas pelos "Portuguezes". É ainda referido que o Pico "tem 3 Villas, 15 Freguezias, 2 Conventos Fraciscanos, 2 Igrejas da Mizericordia, e 34 Ermidas" — note-se que a ilha montanha tem 17 freguesias presentemente, sendo que na altura ainda não existiam as freguesias da Ribeirinha (Lajes) e de São Caetano (Madalena). Cada uma das vilas formava, à época, uma "Capitania de Ordenanças", tendo cada uma a sua guarnição e que no seu conjunto dava origem a um total de 4.607 homens.

Adicionalmente, as culturas predominantes da ilha são destacadas: produções de vinha em grande quantidade, frutas, plantas, grandes matos e criações de gado; contudo, é também mencionado a falta de terreno para grão, o qual tem de vir das ilhas vizinhas do "Fayal, Terceira, e S. Jorge". O chão da ilha é identificado como sendo na maior parte de "pedra queimada", tendo grandes cavernas subterrâneas, "tudo produzido pelo fogo". São ainda indicadas as erupções desde o povoamento (1573, 1718 e 1720) e explicado o que significa o termo mistério: "o campo inutelizado pela lava dos Volcons". A água, essencial à sobrevivência da população, tem também o seu destaque, sendo mencionado que provém "dos poços profundados na terra, e das chuvas, as quaes formaõ as ribeiras notadas na Planta".

Sobre o "Mappa dos habitantes segundo as listas de 1810" [destaque em anexo], são várias as curiosidades que merecem ser realçadas. Para além da já mencionada inexistência de duas freguesias atuais, outras mudaram de nome: a Piedade era conhecida oficialmente por "Ponta da Ilha" (hoje é um nome que não assume esse caráter oficial mas que continua a ser amplamente usado); a Criação Velha assumia o nome da sua paróquia, mais concretamente "N. Sr.ª das Dores"; e a Prainha perdeu não só a letra h devido à evolução linguística, mas também a indicação da sua localização geográfica, pois antigamente designava-se oficialmente por "Prahinha do Norte".

Além disso, foi feito um levantamento dos habitantes por freguesia, fazendo a distinção de género, bem como o número de fogos. Ora bem, embora a distribuição por concelhos seja condizente com a atual, isto é, o mais populoso era e é o da Madalena, sendo o de São Roque o que registava e regista menos habitantes, a distribuição pelas freguesias é bastante diferente da que se observa no presente. Por exemplo, a "Prahinha do Norte" tinha mais habitantes do que a "Villa de São Roque" (1687 vs. 1457) e a "Ponta da Ilha" era mais populosa do que a "Villa das Lages" (2510 vs. 2255) — aliás, a "Ponta da Ilha" era, em 1810, a freguesia com mais habitações no Pico (647) e a segunda com mais habitantes, superada somente pela "Villa da Magdalena" por apenas mais cinco pessoas, embora na zona da atual Piedade existissem mais mulheres (1411 vs. 1314).

Sugere-se que quem queira explorar mais em detalhe esta carta, clique no link seguinte, o qual remete para uma versão onde é possível fazer um melhor zoom da mesma: Carta topographica da Ilha do Pico

Nota final para uma curiosidade muito peculiar: na toponímia do mapa em questão, o termo "do Pico" apenas ocorre uma única vez, mais concretamente para indicar onde fica o "Caes do Pico", mostrando assim a importância que a zona do Cais do Pico já assumia há 155 anos no contexto da ilha montanha!

Haja saúde!

[Post relacionado: 'Eis um mapa da ilha do Pico com quase 450 anos']


4 comentários:

  1. Muito bom ! Excelente análise Ivo.

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  2. Este será o mapa mais detalhado que existe da Ilha do Pico, anterior ao séc XX, mas infelizmente com um formato geográfico difícil de entender, uma vez que os mapas anteriores, nomeadamente o de 1570, são bem mais rigorosos no formato da ilha.

    Acho que podemos dizer que é o Pico há 200 e poucos anos e não apenas 155, pois o levantamento foi feito por volta de 1811.

    Já há alguns anos que o exploro e é fascinante ter acesso a informação visual tão antiga. Nenhum outro mapa desenhou caminhos, terras, vinhas e nomes de sítios, como este. Já tentei perceber a correspondência de alguns dos caminhos com os atuais e existe alguma, embora a falta de rigor no posicionamento das coisas dificulte muito encontrar o caminho certo.

    Excelente partilha!

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  3. Obrigado pelo comentário.
    Efetivamente, podemos dizer que muitos dos dados têm mais de 200 anos, mas foi para salvaguardar as eventuais alterações feitas na cópia de 1862 que o título ficou com "apenas" 155 anos.
    Concordo plenamente que se trata do mapa mais detalhado da ilha montanha anterior ao século XX, constituindo por isso uma relíquia que, felizmente, os meios digitais vieram não só melhor preservar, bem como mais facilmente partilhar!
    Haja saúde!

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