Nos últimos tempos, a Região Autónoma dos Açores tem estado na ribalta a nível
nacional, curiosamente não por causa de intempéries, mas sim devido a um dos
maiores atos democráticos que existem: as
eleições legislativas regionais de 25 de outubro de 2020.
Em particular, um
célebre acordo de incidência parlamentar
— o qual almeja, entre outros, reduzir a subsidiodependência — trouxe para
discussão na praça pública a questão do
Rendimento Social de Inserção
(RSI) nos Açores. Inúmeros artigos na imprensa nacional têm abordado este tema,
revelando importantes dados para perceber o que representa o RSI no arquipélago;
porém, uma análise mais fina das estatísticas consegue evidenciar as variações
substanciais que existem entre as nove ilhas, as quais também merecem ser
destacadas, sob pena de se tomar o todo pela parte.
Comece-se, então, por analisar uma afirmação que corre na opinião pública e na
política nacional: será que a frase "
os Açores é o sítio do país onde há mais Rendimento Social de Inserção" está correta? Existem duas repostas válidas para a pergunta anterior, dependendo se a
análise é feita em termos absolutos ou em termos relativos. No primeiro caso, a
resposta é que
não é nos Açores que há mais beneficiários do RSI; contudo, e tendo em conta a densidade populacional, a
Região Autónoma dos Açores tem a maior percentagem de beneficiários do RSI
por cada 100 habitantes.
Vale a pena recordar o que é o RSI: é uma prestação, da Segurança Social, que
pretende ser um mecanismo de combate à pobreza, possibilitando a indivíduos, e
seus agregados familiares, a obtenção de apoios adaptados à sua situação,
facilitando a satisfação das suas necessidades básicas e visando a inserção
laboral, social e comunitária. Deste modo, o RSI pode também ser encarado como, indiretamente, um
indicador de pobreza.
Assim, será correto afirmar que os Açores são a região mais pobre de Portugal?
Efetivamente, os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre
Rendimento e Condições de Vida
indicam que o arquipélago açoriano é aquele que apresenta a maior taxa de
pobreza ou exclusão social — quase o dobro (36,7%) da média nacional (21,6%).
Face a esta realidade, será natural que o RSI seja mais elevado, em percentagem,
nos Açores, de modo a tentar combater a pobreza; as causas para esta falta
daquilo que é necessário para a subsistência na região é um dos assuntos que tem
merecido a atenção da comunidade científica, isto pelo facto de apresentar
peculiaridades assentes na forma como a terra foi distribuída aos povoadores
e na adequação perversa entre oferta e procura de empregados com baixas
qualificações.
No entanto, os números apresentados anteriormente sobre o RSI nos Açores podem,
à primeira vista, ser enganadores. De facto, receber o RSI não é sinónimo de não
trabalhar, como os beneficiários açorianos o demonstram:
não só os Açores são a região do país onde as pessoas mais apresentam outros
rendimentos, mas também a prestação média do RSI é a mais baixa a nível
nacional (86,11 euros por beneficiário). Por outras palavras, apesar de
cerca de 30% das pessoas que recebem o RSI nos Açores também trabalharem, a instabilidade, irregularidade e baixos salários associados não são
suficientes para os colocarem acima do limitar da pobreza.
É chegada a hora de chamar a atenção para o óbvio — porque o que é óbvio para
uma pessoa pode não o ser para outra: os Açores são nove ilhas e, à semelhança
da sua geografia, também em termos do RSI existem diferenças significativas
entre ilhas. Em particular, apesar de a média regional da percentagem de
beneficiários do RSI ser de 10,2% (
dados Pordata), apenas a ilha de São Miguel regista um valor superior à média regional, nomeadamente 14,1%;
como esta ilha concentra mais de metade da população açoriana (
cerca de 56,5%), os números globais dos Açores habitualmente veiculados nas notícias (e a
respetiva análise) estão desajustados face à realidade das outras ilhas, tal
como o gráfico em anexo demonstra [Beneficiários do RSI no total da população
residente — com 15 e mais anos (%)].
Apresentando por ordem decrescente da percentagem de beneficiários do RSI,
depois de São Miguel (14,1%) vem Graciosa (7,1%), seguindo-se Terceira (6,9%), Santa
Maria (5,1%), São Jorge (3,6%), Faial (2,9%), Flores (2,9%), Pico (2,5%) e Corvo
(0,0%) — note-se ainda que estas últimas quatro ilhas apresentam percentagens de beneficiários do
RSI mais baixas do que a média nacional (3,0%). Tal como os números comprovam,
as variações substanciais existentes no arquipélago são reveladores de que a
questão do RSI, nomeadamente a pobreza, não pode ser resolvida com uma solução
única para todas as ilhas.
Por outro lado, mas igualmente importante, apesar de o RSI ser um indicador
indireto da pobreza, ele não o é da riqueza, certamente; exemplificando, o Corvo
não é decerto o sítio com mais riqueza (em termos de bens económicos) de
Portugal, pese embora esta ilha tenha a mais baixa percentagem de beneficiários
do RSI do país! Aliás,
nos Açores só existe um concelho com poder de compra superior à média
nacional, o qual fica... em São Miguel!
Esta aparente contradição que se verifica na maior ilha açoriana é reveladora
das
assimetrias lá existentes: se, por um lado, São Miguel tem o município com o maior poder de compra dos Açores,
outros quatro concelhos desta mesma ilha integram a lista dos cinco com menor poder de compra no
arquipélago — assim talvez se entenda melhor como, dentro dos Açores, muita
gente enxergue São Miguel como a ilha mais rica, ao mesmo tempo que muitos
outros dizem ser a ilha com maior pobreza, constituindo isto duas visões
plenamente válidas.
Alguns leitores poderão agora estar a interrogar-se em que ilha fica o "intruso"
da lista dos cinco concelhos com menor poder de compra nos Açores... Pois bem,
fica na ilha montanha, a mesma que, à exceção do caso particular do Corvo (
que apresenta uma taxa de desemprego de zero por cento), tem a mais baixa taxa de beneficiários do RSI no arquipélago (a qual é, recorde-se,
inferior à media nacional)!
Posto isto, os dados que se registam no Pico mostram como pode existir um baixo
poder de compra e, ao mesmo tempo, uma baixa taxa de beneficiários do RSI; será
isto contraditório? Não, significa apenas que os rendimentos dos
picarotos, embora baixos, conseguem mesmo assim colocar quem os recebe acima do limiar
da pobreza. Ademais, o caso da ilha montanha é ainda mais paradigmático: segundo
estatísticas do rendimento ao nível local do INE, o Pico é a ilha onde se regista o mais baixo
coeficiente de Gini no arquipélago, ou seja, é onde existe menor desigualdade salarial nos
Açores. Daqui extrai-se uma outra conclusão: rendimentos semelhantes na sociedade tendem a
reduzir a pobreza extrema, mas, à semelhança do RSI, também não são um indicador
de riqueza.
Em suma, os dados aqui expostos comprovam como é necessário um combate à
pobreza existente nos Açores, combate esse que, mais importante do que se
focar na redução da subsidiodependência,
deve ter em atenção as especificidades e potencialidades de cada uma das
ilhas, de forma a se trabalhar em conjunto e de uma forma verdadeiramente
coesa, tendo em vista um desenvolvimento económico e social que seja
equilibrado e equitativo em todo o arquipélago, resultando assim numa
maior riqueza efetiva para todos.
Haja saúde!
Post scriptum: Este artigo foi igualmente publicado na edição n.º 42.341 do 'Diário dos Açores', de 28 de novembro de 2020, e na edição n.º 865 do 'Jornal do Pico', de 4 de dezembro de 2020.