segunda-feira, 1 de março de 2021

Obrigações de Serviço Público do Transporte Aéreo entre Lisboa e Açores – que futuro?


Três das cinco denominadas Gateways aéreas dos Açores (leia-se os cinco aeroportos que recebem voos do exterior da Região, a saber São Miguel, Terceira, Santa Maria, Pico e Faial) têm estado na ordem do dia relativamente ao plano de reestruturação do Grupo SATA. A Azores Airlines é a única companhia a servir essas três Gateways (Santa Maria, Pico e Faial), desde 2015 em exclusividade (nas rotas com Lisboa) ao abrigo de Obrigações de Serviço Público (OSP). Nas outras duas Gateways (Terceira e São Miguel) o mercado está liberalizado desde esse mesmo ano de 2015, pelo que, qualquer companhia aérea pode realizar voos nas condições em que bem entender (frequências semanais, aeronave utilizada, tarifário praticado, etc.). De referir que o “pacote” de rotas OSP em causa incluí também a rota entre Madeira e São Miguel, que será excluída desta nossa abordagem.

A recente exposição mediática deve-se sobretudo à cobertura dada (sobretudo pela RTP e Antena 1 Açores) às preocupações levantadas por diversas entidades (públicas, privadas e cívicas) da ilha do Faial. Infelizmente a cobertura e exposição mediática é bastante menor (ou mesmo nula) noutras ilhas com problemas semelhantes (ou até piores) de acessibilidades. Em concreto, não foram ouvidas as preocupações das outras duas rotas OSP com o Continente: Pico e Santa Maria. Todo este mediatismo repentino fez crer em alguma opinião pública que as rotas OSP são o “grande problema” financeiro do Grupo SATA, e que o Governo dos Açores se preparava para encerrar as 3 Gateways em discussão (o que já foi desmentido por diversas vozes, incluindo pelo Presidente do Governo dos Açores). Gostaríamos de tentar desmistificar um pouco essa visão por via deste artigo, elucidando os leitores com factos e (no final) opiniões pessoais.

As OSP atuais são muito semelhantes às que existiam até 2015, que na altura incluíam as rotas entre o continente português e as ilhas São Miguel e Terceira. De realçar que a companhia aérea concessionada tem de cumprir com o número de rotações e lugares disponibilizados, caso contrário incorre em multas aplicadas pela Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC). Por outras palavras, e na prática, mesmo que uma determinada rotação esteja com ocupação prevista muito baixa, a concessionada não pode cancelar a referida rotação para não incumprir nas OSP [chamamos a atenção para o facto de ao longo deste artigo uma rotação representar dois voos, o de ida mais o de regresso (e.g. Lisboa – Santa Maria + Santa Maria – Lisboa)].

Desde 2015 e até 2019 (inclusive), todas as rotas OSP tiveram um crescimento assinalável no número de passageiros movimentados (Santa Maria + 50%, Pico + 100%, Faial + 20%). A rota do Pico foi aliás a que mais cresceu nesse período entre o Continente e os Açores (incluindo rotas liberalizadas). As três Gateways OSP garantem maior coesão territorial e com as rotações com Lisboa libertaram, em 2019, certa de 892 rotações inter-ilhas (SATA Air Açores), garantindo assim indiretamente, por disponibilidade de frota da SATA Air Açores, melhores ligações para as outras ilhas sem ligações com Lisboa (Corvo, Flores, São Jorge e Graciosa).

Recorrendo a dados mais recentes do Serviço Regional de Estatística dos Açores (SREA), verificou-se a seguinte procura por rota OSP no Inverno IATA 2019-2020 (de Novembro a Março), em relação à oferta mínima de lugares definida:

Rota OSP Mínimo de oferta
(lugares por rota)
Passageiros Transportados
Inverno IATA 2019-2020
Lisboa / S. Maria 5.500 *7.611 2 Rotações Semanais
Lisboa / Pico 5.500 8.115 2 Rotações Semanais
Lisboa / Faial 28.000 19.806 4 Rotações Semanais
*3.776 + 3.835 passageiros em trânsito para São Miguel

Salta à primeira vista que, na rota Lisboa – Faial – Lisboa, as OSP exigem mais lugares do que a procura real. Na prática, as OSP exigem três rotações semanais, mas para cumprir a meta dos 28.000 lugares, a Azores Airlines tem de realizar 4 rotações. Na rota Lisboa – S. Maria – Lisboa, por ser na realidade uma rota circular (Lisboa – S. Maria – S. Miguel – Lisboa), o número de passageiros com destino à ilha do Sol está abaixo da oferta mínima de lugares. Na rota Lisboa – Pico – Lisboa, a oferta de lugares definida pelas OSP é inferior à procura.

A título de curiosidade, os 8.194 lugares não preenchidos na rota do Faial no Inverno IATA de 2019 equivale a 24 rotações da Azores Airlines com o avião vazio. As OSP não permitem à concessionada cancelar voos que estejam com pouca ocupação ou mesmo vazio (ou seja por razões comerciais), já que no Inverno IATA a Azores Airlines cumpre as rotações mínimas definidas em OSP.

Em relação ao Verão IATA 2019 e 2020 (de Abril a Outubro), e recorrendo novamente ao dados do SREA, segue-se o comparativo da oferta mínima de lugares (naturalmente superior em relação ao Inverno IATA) com a procura verificada:

Rota
OSP
Mínimo de oferta
(lugares por rota)
Passageiros Transportados
Verão 2019 Verão 2020
Lisboa /
S. Maria
9.500 10.652 2 Rotações
Semanais
2.291 2 Rotações
Semanais
Lisboa /
Pico
9.500 29.650 3 a 4 Rotações
Semanais
10.292 2 a 4 Rotações
Semanais
Lisboa /
Faial
60.000 69.054 8 a 10 Rotações
Semanais
15.616 5 a 7 Rotações
Semanais

Em 2019 (em pré-pandemia, portanto) o número de lugares definido em OSP foi excedido em todas as rotas, verificando-se que a oferta de lugares exigida está altamente desajustada na rota Lisboa – Pico – Lisboa.

Lisboa – S. Maria – Lisboa (2019 e 2020): Número de voos realizado: 111 / Número equivalente de “voos vazios”: 48

Número de voos realizado: 72 / Número equivalente de “voos vazios”: 48


Lisboa – Pico – Lisboa (2019 e 2020): Número de voos realizado: 143 / Número equivalente de “voos vazios”: 29

Número de voos realizado: 96 / Número equivalente de “voos vazios”: 46


Lisboa – Faial – Lisboa (2019 e 2020): Número de voos realizado: 353 / Número equivalente de “voos vazios”: 70

Número de voos realizado: 189 / Número equivalente de “voos vazios”: 100


A tabela que se segue resume a ocupação média das rotas OSP em 2019 (pré-pandemia) e em 2020 (pandemia). Através de resposta a requerimento de deputados do PSD na ALRA em 2017, inclui-se também a tarifa média anual por passageiro no ano de 2017, por rota OSP.

Rota OSP Tarifa Média Anual
(por passageiro 2017)
Taxa de Ocupação
Média 2019
Taxa de Ocupação
Média 2020
Lisboa / S. Maria 80€ 57% 34%
Lisboa / Pico 95€ 81% 52%
Lisboa / Faial 95€ 80% 47%

A procura pelas rotas do Pico e Faial é bastante elevada no Verão IATA, média/baixa no Inverno IATA e relativamente baixa em Santa Maria todo o ano. É sabido que as tarifas são superiores no Verão IATA, mas não chegam para compensar as perdas do Inverno IATA. Para além disso, a tarifa média é muito inferior à praticada nas Gateways liberalizadas de São Miguel e Terceira, o que ajuda a explicar a operação muito menos rentável nos meses de Verão destas rotas OSP.

Quando se questiona a viabilidade destas rotas, não podemos ter em conta apenas as taxas de ocupação das mesmas. Com a alteração das OSP em 2015, a companhia aérea concessionada deixou de ser compensada pela operação, pelo menos em valores equivalente a pré-2015. Anteriormente, cada passageiro residente e estudante tinha uma tarifa máxima definida e a companhia aérea recebia ainda, diretamente do Estado, uma compensação por cada passageiro transportado, a qual variava entre 86€ e 105€.

Com a criação do subsídio de mobilidade, a diferença entre a tarifa praticada e o valor máximo definido nas OSP para residentes (os conhecidos 134€ para residentes e 99€ para estudantes nas rotas Açores/Continente) reverte a favor do passageiro via reembolso nos CTT, em vez de reverter para a concessionada. Na prática esta alteração veio beneficiar os passageiros com passagens mais baratas após reembolso. A tarifa máxima flexível (ida e volta) nas rotas OSP para residentes (máximo 300€) e estudantes (230€) é agora bastante inferior às tarifas praticadas nas rotas liberalizadas (São Miguel e Terceira), onde por força da liberalização não existe um teto tarifário, verificando-se tarifas que em épocas de maior procura podem ultrapassar os 600€. Nestes casos, apesar de o residente acabar por pagar a tarifa definida, a companhia aérea irá receber uma diferença muito maior por passageiro em rotas liberalizadas, logo mais facilmente poderá rentabilizar essas rotas, em comparação com as rotas OSP. A baixa tarifa média anual por passageiro, em 2017, é explicada também pela conhecida menor procura pelas rotas OSP no Inverno IATA, que obrigam a concessionada a vender bilhetes por preços muito mais baixos, com o objetivo de diminuir o prejuízo dessas rotações deficitárias. Tudo somado, o melhor desempenho financeiro no auge do Verão IATA não chega para compensar os prejuízos no resto do ano.

Ainda no que toca à viabilidade das rotas OSP, a Azores Airlines (como concessionada) está atualmente obrigada a cumprir um número mínimo de rotações e lugares a oferecer por rota e por época IATA (demonstrados nas tabelas iniciais), os dias da semana em que as rotações devem ocorrer, a oferta mínima de carga (que não pode ser recusada pela concessionada se houver disponibilidade na aeronave, tendo prioridade sobre a bagagem dos passageiros), o número mínimo de lugares na aeronave (90, o que condiciona os aviões/companhias que podem concorrer a estas rotas).

Outros fatores que inflacionam os custos operacionais nas rotas OSP são (sobretudo nas Gateways do Faial e Pico) os cancelamentos por motivos meteorológicos, sobretudo no Inverno, e no Verão as frequentes limitações operacionais, sobretudo relacionadas com o comprimento das duas pistas, que impedem o Airbus A320 de operar com capacidade máxima de carga, bagagem e combustível. Note-se que o Airbus A320 é a única aeronave da frota da Azores Airlines que pode atualmente operar (com limitações) nas pistas do Faial e Pico, o que impede a Azores Airlines de uniformizar a sua frota com A321 (atualmente com quatro aeronaves deste modelo). Estão atualmente ao serviço da Azores Airlines três aeronaves A320, sendo que uma terá o seu leasing terminado a médio-prazo, ficando, portanto, dois A320 na frota (frota Grupo SATA: https://www.azoresairlines.pt/pt-pt/frota).

A título de exemplo, se um cancelamento afetar 250 passageiros (ex., 100 ida + 150 volta), e se for aplicável a indemnização compensatória de 400 € (ao abrigo do regulação europeia 261/2004), serão necessários 100.000 € só para suportar estas indemnizações; se houver uma média de dez situações de cancelamento por ano com direito a indemnização (o que está em linha com o que se tem verificado em anos pré-pandemia no Pico e no Faial, atendendo aos cancelamentos por razões operacionais), em 15 anos, por exemplo, serão necessários cerca de 15 milhões de euros só para suportar indemnizações compensatórias.

É possível fazer os necessários ajustes às OSP tendo em conta a procura real de cada rota. Para isso, o Governo dos Açores deverá compensar devidamente a companhia aérea concessionada pelos Serviços Públicos que presta, o que não acontece desde 2015 nestas rotas, podendo começar por eliminar o teto tarifário existente nas rotas OSP. Também consideramos que deve ser introduzida nas OSP alguma flexibilidade comercial permitindo à concessionada cancelar um determinado número de rotações em que a procura é muito baixa, mesmo que isso implique ficar abaixo do número mínimo de rotações semanais. Nesse caso, deve ser assegurado o reencaminhamento dos passageiros por outras Gateways da Região num prazo inferior a 24 horas e com o menor constrangimento possível em tempo total de ligação. O Governo dos Açores deve salvaguardar nas OSP a possibilidade de suspender as mesmas em casos extremos (como a situação de Pandemia que vivemos). Nesta época de pandemia, não se justifica obrigar a concessionária a fazer rotações com 20/30 passageiros (ou até menos) numa aeronave (A320) com capacidade para 165 passageiros, quando há possibilidade de encaminhar os passageiros por outras Gateways.

Lançamos a questão: faz sentido manter OSP todo o ano para as Gateways de Santa Maria, Pico e Faial? Faria sentido ter OSP apenas para o Verão IATA, trabalhando-se em paralelo na melhoria significativa das ligações destas três Gateways a São Miguel no Inverno IATA? Na prática acabar com as ligações diretas com Lisboa, nos cinco meses de menor procura? Ou fará mais sentido ter OSP no Interno IATA, devidamente recompensadas, liberalizando parcialmente as três rotas no Verão IATA?

Nada impede a Azores Airlines de continuar a voar para as três Gateways fora de obrigações OSP, cumprindo a sua missão de serviço público. Por fim, há que considerar a liberalização total e acabar com as OSP, salvaguardando que o Governo Regional, acionista único do Grupo SATA, irá dar instruções para garantir um serviço mínimo adequado ao longo de todo o ano para estas três Gateways, naturalmente sujeito à possibilidade de entrada de outros operadores sazonais nas rotas em causa.

É também pertinente discutir a eventual alteração da frota da Azores Airlines para mitigar os custos operacionais. Pela programação existente à data para o Verão IATA 2021, é percetível que a Azores Airlines terá na sua frota as duas aeronaves A320 já mencionadas e dedicadas quase em exclusivo às rotas OSP do Pico e Faial. As restantes quatro aeronaves A321 ficam dedicadas às restantes malhas de rotas da Azores Airlines.

O A320 é a aeronave ideal para esta operação tendo em conta os dados pré-pandemia patentes neste artigo? Talvez seja adequada no Verão IATA, mas nem tanto no Inverno IATA. Poderiam as OSP ser ajustadas à operação de outra aeronave de menores dimensões (como o Airbus A220-100 ou Embraer E-190-E2) que poderia operar nas pistas do Pico e Faial sem limitações, com menor capacidade de passageiros e carga, permitindo assim adequar o número de frequências com a procura sobretudo no Inverno IATA (procura mais baixa), reforçando-se o número de ligações no Verão IATA em linha com a procura mais elevada destas rotas?

Qual a estratégia do Governo dos Açores para o transporte de carga, agora que se discute novamente a questão do avião cargueiro interilhas, o que pode dispensar grande capacidade de carga para uma aeronave alternativa (com menor capacidade de carga) nas rotações OSP entre as três Gateways e Lisboa?

Assumindo o cenário de que tudo ficará como está a longo prazo em termos de frota na Azores Airlines (que será sempre a mais provável concessionada destas rotas OSP), urge adequar as infraestruturas aeroportuárias ao equipamento existente (aeronaves A320 e A321). Da parte do Governo dos Açores, a ampliação da pista do Aeroporto do Pico (cujo estudo já deveria ter sido tornado público) permitiria a operação dos A321 (impossível hoje!). De referir que a melhoria da pista permitirá também a operação dos A320, sem as já mencionadas limitações de operacionalidade (peso/carga/bagagem/combustível), bem como possibilitará outros voos pontuais do exterior da região no mesmo tipo de aeronaves ou equivalentes (como o Boeing 737).

Era importante ver esclarecido em pormenor a ordem de grandeza do défice de exploração do Grupo SATA ao longo dos anos nas várias vertentes mencionadas pelo Presidente do Conselho de Administração do grupo SATA, em recente entrevista à RTP Açores. Em quantos milhões de Euros as rotas OSP contribuíram (e contribuem) para os resultados negativos do Grupo SATA? Em quantos milhões de Euros outros fatores contribuíram (e contribuem) ao longo dos anos para a situação a que se chegou, nomeadamente os prejuízos com rotas europeias, com rotas da macaronésia, com o A310, com o A330, com os largos períodos em que a frota ficou inativa em terra, com os ACMI (aluguer de aviões a terceiros) em época alta para satisfazer a rede de rotas e maior procura, etc.

As rotas OSP são deficitárias, que ninguém tenha dúvidas disso, mas acreditamos que não são o principal problema da situação financeira grave em que se encontra o Grupo SATA, tal como tem sido apontado por diversos comentadores, em vários artigos de opinião regional, ainda para mais tratando-se de serviço público essencial ao desenvolvimento harmonioso da nossa Região.

A pandemia atrasou o processo de novo concurso de OSP, que neste momento se encontram concessionado à Azores Airlines (voos Territoriais) e SATA Air Açores (interilhas) em regime de ajuste direto. Em 2022, deverão entrar em vigor as novas OSP, após concurso público internacional, quer para voos entre Lisboa e as três Gateways (Santa Maria, Pico, Faial), quer para voos entre São Miguel e Madeira, e também para os voos inter-ilhas (que poderemos abordar noutro artigo).

Muito trabalho de casa se espera por parte do Governo dos Açores e do Grupo SATA, pois são muitas as questões em cima da mesa, sendo certo que é ao Governo dos Açores que cabem as decisões.

Grupo Aeroporto do Pico

Bruno Rodrigues
Ivo Sousa
Luis Ferreira

https://www.facebook.com/groups/aeroportodopico/
https://www.caisdopico.pt/

Haja saúde!

Post scriptum: Este artigo foi igualmente publicado na edição n.º 42.415 do 'Diário dos Açores', de 28 de fevereiro de 2021.

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